Os efeitos danosos das acusações de violência policial militar sem a devida prova.
Sérgio Carrera de
Albuquerque Melo Neto[1]
Nos
últimos dias, uma série de fatos envolvendo eventuais ações de violência praticadas
por policiais militares têm se destacado nos meios de comunicação. Existe por
parte do Quarto Poder (imprensa) matérias jornalísticas de todos os
níveis e credibilidade, as que buscam apresentar a sociedade os fatos com
imparcialidade, assim como algumas outras que transmitem matérias parciais e injustas.
Dentre
as diversas ocorrências veiculadas nos últimos dias, especificamente envolvendo
policiais militares, convém que alguns pontos sejam discutidos, sem ufanismo, e
observados sob a luz da lei e da dignidade da pessoa humana.
A
imprensa
A
imprensa tem um papel muito importante em propagar, investigar e divulgar
informações por meio de seus múltiplos meios de comunicação. Entretanto, quando
as matérias são tendenciosas e sensacionalistas, sem a apuração adequada dos
fatos, as consequências podem gerar efeitos negativos aos indivíduos e
instituições envolvidas.
A
partir do momento que o nome de um policial militar é divulgado na imprensa,
antes de que uma investigação seja concluída, antes do oferecimento de denúncia
por parte do Ministério Público ou que seja considerado culpado por sentença
emitida pelo Poder Judiciário, dentro do devido processo legal, ele é
considerado inocente. Esse cidadão (sim, o policial militar também é um
cidadão), caso seja inocente, sofrerá com acusações de membros da
comunidade, tendo seu nome exposto nos noticiários televisivos, jornais e
programas de rádio, sem ao menos ter exercido o seu direito de defesa,
garantido pela Constituição Federal e normas internacionais no âmbito do
direito internacional público.
O
profissional terá sua imagem denegrida e a sua vida mudará quase que por
completo. São inúmeros os casos em que policiais militares acusados pela imprensa
precisam mudar de residência, devido a ataques de pedras e madeiras e/ou de
pinturas com acusações aos muros de suas casas. Situação ainda pior ocorre com
a sua família, que também sofrerá de uma maneira muito dolorosa, pois as
crianças são mais sensíveis e vulneráveis a retaliações de outras, nas escolas
ou na comunidade onde frequentam. Os cônjuges se envergonham e os casos de
depressão, síndrome do pânico e estresse são comuns a todos. Todos esses
problemas se unem aos custos financeiros que o policial militar passa a ter com
as custas advocatícias.
Os
prazos das investigações são definidos por legislação federal e enquanto
perdurarem os recursos, a Constituição Federal considera todos inocentes até
condenação transitada em julgada. Ou seja, caso o oficial encarregado de um
inquérito policial militar (ou um delegado encarregado de inquérito policial), indicie
um policial militar por haver indícios de materialidade e autoria do
cometimento de crime, os autos são encaminhados ao Ministério Público, cabendo
ao promotor do caso analisar e decidir sobre o oferecimento, ou não, de
denúncia ao juiz de competência.
O
juiz assim decidirá se a denúncia será ou não aceita. Caso a denúncia seja
aceita pelo magistrado, o policial militar passa a condição de réu em processo
judicial e irá a julgamento em primeira instância. Convém ressaltar que compete
aos promotores de justiça restituir os autos de inquérito às Corregedorias da
Polícia Militar (e da Polícia Civil), quer seja para procedimentos adicionais
ou para que o fato seja apurado no âmbito disciplinar. Por não ser considerada
peça obrigatória, o inquérito policial pode ser dispensado pela promotoria,
caso julgue ter indícios suficientes parar o oferecimento de denúncia ao poder
judiciário.
Trabalho
das Corregedorias PM
É
comum declarações midiáticas que induzem a um pensamento coletivo da existência
de corporativismo nas Corregedoria da Polícia Militar. Além de suas obrigações
legais como autoridades de polícia judiciária militar, existe um intenso
acompanhamento por parte dos promotores que atuam diretamente aos crimes
militares afetos a atividade policial militar, sendo esse o principal e mais
exímio órgão de controle externo que existe. Ademais, em muitas ocorrências
policiais militares com indícios de violência ou qualquer outro tipo de crime
ocorrido, a Polícia Civil também pode instaurar inquérito e proceder em
investigação, de acordo com o caso.
Via
de regra, no âmbito interno, a Corregedoria é conhecida mais pelo excesso do
que pela omissão, visto a quantidade de procedimentos apuratórios instaurados,
quer disciplinares ou penais. Obviamente que a Administração pode, e deve,
rever seus atos sempre quando julgar ter cometido um equívoco, não apenas pelos
princípios que regem a administração pública, quanto leis diversas, como o
Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar. Mais recentemente, a
Lei 13.869, de
05 de setembro de 2019, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade,
também objetiva restringir possíveis excessos cometidos por autoridades, as
quais podem ser associados a instauração indevida de procedimentos de
investigações diversos, como bem rege a lei.
Torna-se
claro, portanto, que excessos e abusos que visam prejudicar um servidor,
beneficiar a si mesmo ou a outrem, ou ainda atos diversos que tenham
como objetivo meros caprichos e/ou satisfação pessoal, imputam crime de
abuso de autoridade, os quais reforçam ainda mais o papel do administrador
público em bem observar os princípios e legislações que lhe são conferidas
pelos cargos que ocupam. A omissão por parte da Corregedoria atribui da mesma
forma crimes militares e transgressões administrativas diversas aos
profissionais com responsabilidades funcionais previstas em lei.
No
Distrito Federal, existe uma próxima atuação da Promotoria Militar com a
Corregedoria contribuindo para o fortalecimento das investigações realizadas. O
Departamento de Controle e Correição (Corregedoria) da Polícia Militar do
Distrito Federal - PMDF funciona 24h e conta com uma Ouvidoria-Geral, onde os
cidadãos podem “registrar uma reclamação, denúncia,
sugestão, elogio e informações de caráter geral sobre serviços da administração
pública, tais como horários de funcionamento, números de telefone, endereços,
entre outras”, devidamente
protegidas pela Lei de Acesso à Informação.
O
Núcleo de Investigação e Controle Externo da Atividade Policial (NCAP) do
Ministério Público do Distrito federal e dos Territórios está diretamente subordinado
ao Gabinete do Procurador-Geral de Justiça e possui atribuições para atuar em
todo o Distrito Federal.
Dentre
as atribuições, a principal é a de realizar diligências investigatórias e
exercer o controle externo da atividade policial no Distrito Federal, de forma
concorrente com as várias Promotorias de Justiça que tratam da matéria criminal,
objetivando efetuar diligências investigatórias sempre que verificar-se a recusa,
omissão ou retardamento injustificado do agente que investiga o fato. Assim, toda e qualquer
investigação do cometimento de crimes por policiais militares são acompanhados
não apenas pela Corregedoria da PM, mas também pelo Parquet competente.
Responsabilidade
dos órgãos
A
ação de todas as instituições policiais e as condutas de seus efetivos devem
ser sempre amparada pela Carta Magna e leis existentes. Entretanto, a
existência de documentos que estabelecem os procedimentos policiais nas mais
variadas ações da atividade profissional, como Procedimentos Operacionais
Padrão (POP) e manuais diversos, em particular, manuais de abordagens, são
fundamentais para que ante uma investigação ou julgamento, a defesa possa se
embasar em regras de conduta específicas laborais.
Todo
órgão policial deve possuir regimento interno, planos estratégicos, manuais,
diretrizes, normas, e POP’s que norteiem não apenas a normatização do
funcionamento administrativo da instituição, mas em especial, manuais que
orientarão, com base em estudos científicos, acadêmicos e técnicos, a conduta e
os procedimentos a serem adotados, sempre visando a preservação da vida e da
dignidade da pessoa humana.
Dentro
da administração, não é aceitável um órgão público, em particular um policial,
sem todo esse compêndio de normas, os quais são fundamentais para regrar
e pautar as ações policiais como garantidores e promotores de direitos humanos,
mantenedores da paz, ordem e segurança pública.
A
Organização das Nações Unidas (ONU) quando solicitada a realizar a criação ou
reestruturação de uma agência policial, os especialistas da sua Divisão
Policial partem da premissa de que esse compêndio normativo deve existir antes
mesmo da implementação de processos de recrutamento/seleção e emprego de
policiais para o desempenho de suas atividades cotidianas. A inexistência
desses tipos de documentos imputa direta e irrestrita responsabilização dos que
ocupam os cargos de chefia e comando. Afinal, os policiais devem ter como base
nos cursos de formação, aperfeiçoamento e de especialização, ensinamentos
padronizados de condutas para o desempenho da função policial. Em casos de
investigações, como os que hoje muitos “julgam e já sentenciam os agentes da
lei” ao assistir as matérias da imprensa, parte-se do pressuposto de que essas normas
existem e que são embasadas pela legislação em vigor, as quais servirão
inclusive como parte fundamental para as investigações e eventuais julgamentos de
policiais militares que tiveram condutas ilegais.
Talvez
o que muito se espera dos órgãos policiais seja a adoção de princípios
fundamentais que devem ser implementados por esse tipo de instituição e pouco
ainda utilizado, e quando o são, ainda carecem de boas práticas. Conforme diretrizes
da Organização das Nações Unidas (ONU), esses princípios já vêm sendo utilizados
há anos em países desenvolvidos e que aos poucos vem sendo incorporados a
órgãos brasileiros, sendo eles o princípio da transparência e o do accountability.
É normal que fatos que envolvam supostos atos de violência policial repercutam
e despertem o interesse social. Departamentos policiais desenvolvidos ao redor
do mundo possuem políticas bem claras em como realizar press conferences e
press release, onde possam apresentar o andamento das investigações, de
forma clara, responsável e firme. Quando esses comportamentos não são realizados
pelas corporações policiais, a imagem que se transmite é justamente o oposto do
que se espera, o de corporativismo, de falta de transparência e da falta de accountability,
ou seja, uma imagem negativa, que poderia muito bem ser contornada, com
policiais capacitados para lidar com a imprensa e doutrina bem sedimentada.
A
instituição da audiência de custódia em 01 de janeiro de 2016 no Brasil
determina:
a apresentação de qualquer pessoa presa em
flagrante, no prazo máximo de 24 horas, a um juiz para que este resolva sobre a
legalidade de sua prisão e/ou sua necessidade, bem como identifique eventuais
lesões ou torturas ocorridas no momento da captura ao indivíduo encarcerado,
funcionando, sobretudo, como um controle ao exercício da polícia
Independente
das repercussões que as “audiências de custódias” geram, ela tem previsão legal
e são acompanhadas por promotores de justiça:
A previsão legal encontra-se, desde
muito, em tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Com efeito, o art. 7º., 5, do Pacto de São Jose da Costa
Rica ou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos reza: "Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser
conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou
outra autoridade autorizada por lei a
exercer funções judiciais e tem o
direito
de ser julgada em prazo
razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo.
Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu
comparecimento em juízo." No mesmo sentido, o art. 9º., 3 do Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos de Nova York.
O
instituto da “audiência de custódia” visa tutelar o direito do preso,
que devem ser respeitados e garantidos pelo Estado. Dentre os principais temas
em discussão, eventuais geradores de polêmicas são a reversão do ônus da prova contra
os policiais condutores das ocorrências, que por vezes são imputados crimes
durante as audiências. Outro ponto é a contínua praxe dos presos serem
libertados antes dos policiais militares, que ficam por vezes prestando
depoimentos ou realizando procedimentos burocráticos por horas. A sincronia que
deve existir entre os agentes do Estado ainda não foi alcançada da melhor
maneira em grande parte do Brasil. Ou talvez, as partes integrantes desse
processo carecem de uma melhor compreensão do que significa esse tipo de
audiência.
Se
um criminoso tem os seus direitos respeitados, não pode uma sociedade composta
por cidadãos dignos não respeitarem o cidadão policial, que faz jus aos
direitos constitucionais, assim como todos os demais indivíduos. Logicamente
que, em havendo abuso por parte de policiais militares, os fatos deverão ser
devidamente investigados e julgados, com o devido rigor, tendo o princípio da
presunção de inocência garantido e respeitado até sentença transitada em
julgado. E a Constituição Federal, a Carta Magna máxima brasileira, garante
esse direito a todos, independente se policiais militares ou não.
Espera-se
por parte do Estado e corporações policiais prover a devida capacitação,
treinamentos diversos e a aquisição de armamento menos-letais e letais, além de
normas, manuais e todas as regulamentações adequadas para o desempenho das
atividades policiais, incluindo aquelas que padronizam o correto uso dos
armamentos, munições e instrumentos, com enfoque nos instrumentos com menor
potencial ofensivo (menos-letais). Dos policiais militares, braço armado do
Estado e legítimo detentor do uso da força, deseja-se a um trabalho pautado na
lei, garantindo a manutenção da ordem e segurança pública, o restabelecimento
da paz, em caso de ruptura das leis e da ordem, sempre objetivando a
estabilidade e harmonia social, fazendo o uso da força de maneira racional,
legal e proporcional a ofensa, se houver necessidade.
Dos
cidadãos, o fiel cumprimento das leis do país e o respeito às autoridades
constituídas são desejadas. Aqueles que violam a legislação e a estabilidade
social, que ameaçam a integridade física e patrimonial, com ações socialmente
condenáveis, devem ser detidos pelos agentes encarregados pela aplicação da lei,
dentro dos procedimentos supramencionados, para que sejam levados a julgamento,
dentro dos limites e direitos previstos a todos que transgridam as normas
legais. Por parte da imprensa, roga-se pelo profissionalismo, imparcialidade e
prudência na edição de matérias jornalísticas, tendo em mente os efeitos
nefastos, e por vezes irreversíveis, na vida de muitas vidas, na maioria,
inocentes.
Aos
policiais militares que cometem crimes, que atuam com excesso do uso da força
ou excedam em abusos de autoridade diversos, devem ser investigados com grande
rigor, pois aqueles que são investidos pelo poder do estado (policiais)
justamente para garantir a aplicação da lei por todos, não pode em qualquer
hipótese ser um violador dela.
Convém ressaltar que, como todo cidadão, o
policial militar é titular dos direitos humanos, dentre os quais possui,
durante todo o processo, direitos inerentes a todo indivíduo, de maneira
universal e indelegável.
Referências
BRASIL. LEI nº 13.869, de 5 de
setembro de 2019. Dispõe
sobre os crimes de abuso de autoridade. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm
DISTRITO FEDERAL. Lei de Acesso à Informação nº 4.990/2012. Disponível em http://www.fazenda.df.gov.br/aplicacoes/legislacao/legislacao/TelaSaidaDocumento.cfm?txtNumero=4990&txtAno=2012&txtTipo=5&txtParte=.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO
DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Portaria nº 799/96
do MPDFT. Disponível em http://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/conhecampdft-menu/nucleos-e-grupos/ncap
MINISTÉRIO PÚBLICO DA
UNIÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. NÚCLEO DE
INVESTIGAÇÃO E CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL E PROMOTORIAS DE JUSTIÇA
MILITAR. RECOMENDAÇÃO CONJUNTA Nº 1, DE 16 DE JUNHO
DE 2017. DOU
de 28/06/2017 (nº 122, Seção 1, pág. 58). Disponível em Disponível em http://www.lex.com.br/legis_27456731_RECOMENDACAO_CONJUNTA_N_1_DE_16_DE_JUNHO_DE_2017.aspx
Sites:
[1] Consultor internacional em
polícia, direitos humanos e segurança pública. meloneto.sergio@gmail.com.
Agradecimento ao amigo, professor e major Frederico
Afonso Izidoro, Chefe da Divisão de Direitos Humanos da Polícia Militar do
Estado de São Paulo (https://linktr.ee/FredericoAfonso) e ao também amigo e major Eduardo
Mendes de Almeida, da Polícia Militar do Distrito Federal, pelos aconselhamentos pontuais.
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