Novas Diretrizes das Nações Unidas sobre Armas Menos-Letais na atividade policial.
Por Sérgio Carrera de Albuquerque Melo Neto
Após
cerca de uma década, o Alto Comissariado de Direito Humanos da Organização das
Nações Unidas conseguiu aprovar a nova versão das “Diretrizes de Uso de Armas Menos-Letais
na atividade policial (ou de agentes encarregados pela aplicação da lei)”. É
sempre importante destacar que a plena maioria dos documentos da ONU somente
são publicados após meses (ou anos) de consultas junto a seus Estados-Membros.
Neste processo especificamente, eu tive o privilégio de ser convidado a participar
de debates e workshops, em três momentos distintos, sobre alguns dos capítulos
desse “Manual”.
O
processo inicial é realizado pela unidade de treinamento do Alto Comissariado,
apoiado por alguns países. Em seguida, grupos de especialistas em direitos
humanos e polícia de todo mundo são convidados a contribuir em atividades para
construção de conceitos e entendimentos comuns. Ou ao menos, da maioria, pois
consenso nunca existe.
Em
2018, no último workshop realizado para discutir um tema muito delicado e
complexo, percebi ser o único representante do hemisfério sul, o que demonstrou
um grande desequilíbrio de “realidades”, “culturas” e “contextos
socioeconômicos”. Foram muitos debates, com algumas vitórias e outras derrotas,
buscando mostrar as situações vividas no Brasil e outros países em semelhantes.
O
documento foi finalizado em agosto de 2019, encontra-se em processo de diagramação
e publicação e conta com algumas novidades. O conceito inicial foi retomado, o
de armas menos-letais, não mais utilizando os demais, como, “menos que letais”,
“menor poder ofensivo”, “menor potencial ofensivo” etc.
Em
seu capítulo segundo, nos Princípios Gerais do Uso da Força, as
Diretrizes estabelecem que os funcionários
responsáveis pela aplicação da lei devem sempre respeitar e proteger os
direitos e liberdades humanos fundamentais, especialmente quando consideram
qualquer emprego do uso da força. Os direitos das autoridades policiais à vida
e à segurança também devem ser respeitados e garantidos. Este ponto é
importante pois trata, ainda que superficialmente, dos direitos humanos dos
policiais, algo que posteriormente é melhor explorado.
De acordo com as observações relativas ao
artigo 10 do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela
Aplicação da Lei, a expressão “encarregados da aplicação da lei"[1] refere-se a todos
os executores da lei, nomeados ou eleitos, que exerçam poderes de natureza
policial, especialmente o poder de efetuar detenções ou prisões. Nos países em
que os poderes policiais são exercidos por autoridades militares, uniformizadas
ou não, ou por forças de segurança do Estado a definição de encarregados da
aplicação da lei deverá incluir os agentes desses serviços, como no caso de
militares das Forças Armadas em exercício de ações da Garantia da Lei e da
Ordem – GLO no Brasil.
O texto reitera conceitos básicos do uso da força, e que,
na medida do possível, meios não violentos devem ser usados antes do uso da
força e de armas de fogo. Os policiais podem usar a força apenas se outros
meios parecerem ineficazes ou sem promessa de alcançar o resultado pretendido.
Da mesma forma, quando necessário, os agentes da lei devem estar equipados com
equipamento de proteção individual adequado (Equipamentos de Proteção
Individuais - EPI), como capacetes, escudos, luvas e coletes à prova de facas e
balas. Cabe, portanto, as instituições policiais e aos estados comprarem e
realizarem as capacitações necessárias para que os policiais estejam
conscientes de seu valoroso papel na sociedade, antes de que exista a
necessidade de qualquer emprego da força, mesmo que legítimo.
O uso da força por agentes da lei devem seguir os seis novos
princípios definidos nas novas Diretrizes. Neste artigo, tratarei de
cinco dos seis princípios estabelecidos pela nova doutrina, e analisarei o accountability
nos próximos dias:
1. Princípio da Legalidade
2. Princípio da Precaução
3. Princípio da Necessidad
4.
Princípio
da Proporcionalidade
5.
Princípio
da Não-discriminação
6.
Princípio
da “Prestação de Contas” (accountability)
1.
Princípio
da Legalidade
O uso da força deve ser regulado pelas leis domésticas e
administrativas, de acordo com a lei internacional. O uso da força só pode ser
justificado quando usado com o objetivo de atingir um objetivo legítimo de
aplicação da lei. As políticas nacionais sobre o uso da força devem ser
adotadas por agências e funcionários responsáveis pela aplicação da lei e em
cumprimento às normas internacionais. A legislação dos países deve ser
suficientemente clara para que suas implicações legais sejam previsíveis e amplamente
divulgadas, de fácil acesso a todos. A força na aplicação da lei nunca deve ser
usada de maniera punitiva (2.4)[2]
Somente armas e sistemas de armas devidamente autorizados
pelas autoridades estatais, conforme legislação, podem ser usadas pelas
agências policiais e por seus funcionários. A lei e os regulamentos internos de
cada país devem especificar condições para o uso de armas não-letais e
equipamentos relacionados e impor limitações ao seu uso a fim de minimizar o
risco de ferimentos (2.5)
2.
Princípio
da Precaução
As operações e ações de aplicação da lei devem ser
planejadas e conduzidas tomando todas as precauções necessárias para evitar, ou
ao menos minimizar, o risco de recorrer à força por policiais, bem como para
minimizar a gravidade de qualquer dano que possa ser causado. Os agentes
responsáveis pela aplicação da lei devem adiar o contato direto ou o
envolvimento com indivíduos, caso isso torne menos provável a necessidade de
usar a força ou um potencial resultado violento, ou se o atraso não represente
ameaça a policiais ou a terceiros (2.6)
A disponibilidade, o treinamento e a provisão dos policiais
com equipamento de proteção adequado e uma gama apropriada de armas menos-letais
são medidas essenciais de precaução para evitar danos desnecessários ou
excessivos.
As políticas, instruções e operações de aplicação da lei
devem dar atenção especial a pessoas particularmente vulneráveis às
conseqüências nocivas do uso da força em geral, bem como aos efeitos de armas
menos letais específicas, como crianças, mulheres grávidas, idosos, pessoas com
pessoas com problemas de saúde mental e pessoas sob influência de drogas ou
álcool. Neste caso, protocolos específicos, com estudos e boas práticas, devem
ser desenvolvidos pelos órgãos policiais.
3.
Princípio da Necessidade
No cumprimento de seu dever, os
agentes da lei podem usar a força somente quando estritamente necessário e
somente na extensão exigida para o desempenho de seu dever. Em outras palavras,
os responsáveis pela aplicação da lei só devem usar a força quando for
estritamente necessário, em circunstâncias para alcançar um objetivo legal.
A necessidade exige que nenhuma alternativa razoável,
além de recorrer ao uso da força, apareça naquele momento para atingir um
objetivo legítimo de aplicação da lei. Em particular, os agentes da lei devem
procurar diminuir a escalada das situações, inclusive buscando uma solução
pacífica de resolução de uma situação perigosa sempre que possível.
O uso desnecessário ou excessivo da força pode significar
um tratamento cruel, desumano ou degradante. Quando o uso da força é
razoavelmente necessário nessas circunstâncias, somente a força mínima
necessária para alcançar esse objetivo deve ser usada.
4.
Princípio da Proporcionalidade
O tipo e o nível do uso da força e os
danos que se espera que resultem em nível razoável devem ser proporcionais à
ameaça representada por um indivíduo, ou grupo, ou à ofensa que está sendo ou
prestes a ser cometida. Em nenhum caso, o uso excessivo da força se justifica
em relação em relação ao objetivo legítimo a ser alcançado.
Por exemplo, o uso da força que provavelmente resultará
em ferimentos moderados ou graves, inclusive com o uso de armas menos-letais,
não se justifica apenas para obter o cumprimento de um pedido à uma pessoa que
apenas resiste passivamente.
Em todos os momentos, as autoridades policiais devem
considerar e minimizar o possível impacto incidental do uso da força sobre os
transeuntes, equipes médicas e jornalistas. As instituições policiais não devem
direcionar a força contra essas pessoas e qualquer impacto incidental deve ser
estritamente proporcional ao objetivo legítimo a ser alcançado.
5.
Princípio
da Não-discriminição
No desempenho de suas funções, os agentes da lei não discriminarão
nenhuma pessoa com base em raça, etnia, cor, sexo, orientação sexual, idioma,
religião, opinião política, origem política, origem nacional ou social,
deficiência, propriedade, nascimento ou outros critérios semelhantes.
Para garantir a não discriminação e tratamento igual às pessoas
sujeitas ao uso da força, um nível elevado de cuidado e precaução deve ser
exercido em relação a indivíduos conhecidos ou com probabilidade de serem
especialmente vulneráveis aos efeitos de uma arma específica.
O monitoramento do uso da força, inclusive com referência
a informações apropriadas sobre aqueles contra os quais a força é usada, é um
elemento crítico nos esforços para garantir que a força não seja usada de
maneira discriminatória.
Considerações
Os cinco princípios das novas “Diretrizes das Nações Unidas sobre Armas Menos-Letais na atividade
policial” ora abordados suscintamente não destoam daqueles que as instituições
mais modernas já têm normatizado em manuais ou adotado de forma costumeira em
suas ações operacionais. O uso da força deveria ser sempre uma exceção na
atividade policial, que em suas atividades preventivas e de investigação,
utilizem técnicas de policiais promotores e garantidores de direitos humanos,
mediadores de conflitos e negociadores sociais. Ações com o uso da força são
muitas vezes necessárias, e esses princípios devem balizar a atuação policial e
de outras autoridades encarregadas pela aplicação da lei com o objetivo de
minimizar danos e cessar o mais rapidamente comportamentos ilegais.
[1] Para fins deste
artigo, o termo “encarregados da aplicação da
lei" poderá ser simplificado para policiais ou agentes policiais.
[2] Tradução
própria.
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