Reflexões sobre a valorização, gestão e reforma policial



Na última década, as organizações públicas e privadas vêm mudando os seus conceitos de gestão, buscando modelos com maior produtividade de seus funcionários e, consequentemente, produtos e serviços de maior qualidade a seu público-alvo. Essa dinâmica vem invertendo a lógica do modelo tradicional vertical (top – down) para outros de modelos horizontais, mais modernos, interativos, inclusivos, e de trabalho em equipe mais forte, onde todos têm direito a voz.
O acelerado ritmo de evolução das sociedades em todo o mundo demanda que as empresas se adequem e se modernizem a fim de acompanhar as novidades diárias, as quais são alavancadas pelo aumento do compartilhamento instantâneo de informações na internet, em particular, das redes sociais, que hoje influenciam desde tendências de moda e opinião pública até eleições presidências em muitos países.
Nesse mister, as instituições policiais também devem se modernizar e buscar se adequar ao desenvolvimento no âmbito de suas sociedades. Para tanto, alguns elementos são importantes para esse tipo de consideração. O valor e as habilidades dos membros das corporações policiais nunca deveriam ser negligenciados pela chefia, em todos os seus níveis. Os processos de tomada de decisões com maior probabilidade de sucesso são aqueles onde todos participam, com a madura consciência de que a decisão final cabe aquele que ocupa o cargo funcional para tal.
As instituições policiais que ainda relutam para manter modelos que não acompanham a modernização dos processos de gestão, assim como procedimentos ineficientes em atender as novas demandas sociais, estão fadadas a um engessamento e envelhecimento de suas práticas institucionais, gerando insatisfação e desmotivação interna e a entrega de produtos e serviços de má qualidade ao seu cliente, além de desconectadas com a realidade social que estão inseridas. No caso das polícias, são os seus próprios policiais e os cidadãos que estão sob suas jurisprudências que sofrerão pela má gestão, políticas e práticas ultrapassadas e falta de visão e planejamento (factível e coerente).
Jason Sinek traz em seus livros e palestras uma importante reflexão. A busca por altos cargos e títulos profissionais fazem parte, quase que naturalmente, de objetivos e metas pessoais, assim como são sinônimos de sucesso na carreira de muitos. Na maioria das vezes, essas conquistas levam as pessoas a se acostumar com as “regalias e benefícios” que vêm com os cargos ocupados. Aqueles que conseguem, com a experiência e maturidade, ter consciência de que aquele cargo é temporário e passageiro, construirão relações de amizade, espírito de equipe, motivação constante, confiança e geração de impacto, que serão determinantes para o verdadeiro sucesso coletivo.          
Verifica-se em muitas instituições policiais brasileiras uma supervalorização de cargos, títulos e patentes em detrimento aos serviços prestados a comunidade e a valorização do seu recurso humano, o policial, peça fundamental para uma organização de sucesso (dentre outras importantes, mas acessórias).
Mas de que valem todos os galardões sem amigos verdadeiros, sem efetivos leais, sem legados para os sucessores e reclusos em grupos fechados?
De que vale tudo isso, se as ações dos que estão no topo são desprovidas de legitimidade institucional, e aqui não me refiro a legitimidade da autoridade nomeada, mas da falta por decisões sem participação, ou consulta, dos integrantes de suas instituições, que ficam a margem de qualquer informação importante de nível organizacional?
De que vale tudo isso, se a política prevalece, influencia diretamente, determina e tem mais poder dentro de uma instituição policial do que qualquer outro ator?
De que vale tudo isso, se existe, mesmo que de maneira velada, rixas internas que apenas refletem que os interesses pessoais prevalecem ante os coletivos e institucionais?
 De que vale tudo isso, se os modelos de ensino são ultrapassados e o estímulo democrático a produção de conhecimento são praticamente inexistes?
De que vale tudo isso se muitas das legislações elaboradas visam prejudicar o desenvolvimento acadêmico e profissional dos policiais?
De que vale tudo isso, se a saúde física e mental dos policiais está doente e as políticas voltadas para o assunto (se existirem) são caóticas e sem estrutura?
De que vale tudo isso, se não existe respeito a direitos mínimos dos policiais, como o respeito a folga após sua jornada de serviço, compensação de horas em casos especiais, reconhecimento por atos meritórios etc.
De que vale tudo isso, se inexiste valorização e motivação dos seus integrantes, que colocam suas vidas em risco para salvaguardar a vida de todos, mas têm as suas negligenciadas por aqueles que deveriam zelar por elas?
De que vale tudo isso?
O policial que está na faixa de pedestre em frente a uma escola tem uma importância incrível e seu trabalho nunca pode ser menosprezado. Ele é o “tio” que garante a segurança dos pais e alunos. Ele é a presença mais clara garantia de segurança por parte do estado.
Na atividade policial, todas as áreas são importantes e de risco, pois ele é iminente, pode ocorrer a qualquer segundo. Todas necessitam de especializações e merecem respeito. Ser policial merece respeito. Afinal, quantas profissionais juram dar sua vida em prol do outro?  
A percepção do binômio “patentes x habilidades” é cada dia mais inclusivo e presente na gestão moderna. Qualquer policial pode ser uma potência em algumas habilidades, independentemente de sua patente. Organizações que não ainda não acordaram para as novas demandas da administração têm duas opções:
1) Se adaptarem e promoverem as mudanças necessárias em suas estruturas, moldando a cultural organizacional à realizada social; ou,
2) A falência, descrédito e ineficiência institucionais, por ter policiais desmotivados e sem perspectivas, podendo apenas oferecer a seus clientes (os cidadãos) serviços e produtos de má ou péssima qualidade.
Cargos ou patentes superiores não são sinônimos de maior capacidade ou habilidade. Isso é fato. É senso comum que os cargos e patentes podem ocorrer por contextos e indicações políticas, ou apenas por uma questão de um maior tempo “de casa”, que também não devem ser desconsiderados. Subestimar o potencial de novos ou menos experientes profissionais nos mais diversos níveis de decisão, em particular daquelas que geram impacto direto e real na vida de todos os integrantes, demonstra nada mais que soberba e desconhecimento do que um verdadeiro chefe/comandante deve ser, um líder. Liderança não é imposta por títulos, cargos ou patentes, mas sim por exemplos e mentalidade voltada para o bem maior do público interno e externo. Um líder ouve a todos, aceita críticas, as quais podem ser positivas ou negativas, se modifica, motiva, participa, cresce junto com os seus.
Ser chefe/ comandante é fácil. Está ali por um ato de nomeação ou indicação. Agora, ser líder é muito diferente. Nos órgãos policiais sobram chefes e comandantes, mas existe um enorme vácuo de líderes. Antigos jargões são atemporais, como “As palavras convencem, mas o exemplo arrasta.". Mas apenas faz sentido, se quem der o exemplo for um líder, com todos os valores que ele carrega consigo. Mas há de se concordar que há pouca capacitação para “líderes policiais” e os que tem, desenvolvem ao longo dos anos ou possuem naturalmente essas características.
Outro jargão extremamente negativo é o “burro bom, carga nele”. Há uma tendência, até que natural, de se exigir mais dos mais produtivos, mais capacitados, que gostam de ajudar, até para se sentirem mais úteis, uma vez que muitas instituições são deficientes em fazer com que os policiais se sintam como todos os profissionais deveriam se sentir, úteis e produtivos. Isso em muito justifica as subculturas existentes nas organizações policiais, inclusive com ritos de passagens e de aceitação a certos grupos e unidades, que possuem seus próprios códigos de conduta e motivação, como se independentes fossem. 
Os países mais desenvolvidos vêm alterando os seus modelos de gestão e se pautando cada dia mais na valorização e reconhecimento de seus integrantes, com suas habilidades pessoais e profissionais, e se adequando as mudanças sociais. No Brasil existe uma grande resistência a mudanças nos órgãos policiais, quer por corporativismo quer por brigas entre categorias. Muitos defendem suas “tradições” e ressaltam que não há necessidade de mudar “o que está dando certo há tantos anos, décadas, até séculos”. Todavia, as mudanças ocorrem e devem ocorrer. Aos que hoje lutam para manter o statos quo institucional desconhecem, ou não analisam, que suas próprias corporações são fruto de um processo lento e talvez quase imperceptível de transformação ao longo dos anos. Segurança pública é sim uma responsabilidade compartilhada. Dever de todos. Todavia, compete as corporações policiais a garantia da ordem e paz social. Assim, não há como concordar que o modelo de segurança pública no Brasil seja adequado. É uma briga de “gatos e ratos”, onde a polícia passa boa parte de sua atividade “enxugando gelo”.
Muitos países realizam reformas com certa frequência, alguns a cada 3 anos, outros 5 anos, e alguns quando julgam importantes, especialmente quando há mudanças legais que interferem diretamente na atividade policial. No mesmo sentido, não há como fazer uma reforma policial desvinculada de reformas em todo o sistema de justiça criminal do país, pois são conectados, apesar de independentes entre si.  
Faz-se necessário registrar que uma constante culpa transferida ao poder judiciário é injusta, em sua maioria. Se a polícia prende, o juiz cumpre a lei, podendo relaxar ou não a prisão. Presume-se que todas as decisões dos magistrados nas polêmicas audiências de custódias e decisões judiciais são amparadas pelas leis em vigor. E isso deve ser de consciência coletiva. As exceções negativas podem ser cometidas por todos os agentes públicos do Estado. Mas são, e devem ser, exceções. Problema maior encontra-se no Parlamento, responsável pela elaboração das leis. Se os representantes do povo não estão em sintonia com os anseios de seus eleitores, cabe aos cidadãos exigirem as alterações pertinentes. Aos agentes do Estado, apenar cumprir o que a lei prevê.
Muitos países adotam o conceito de Security Sector Reform – SSR (“Reforma do Setor de Segurança”) para realizar uma reforma ampla (de um sistema estatal – judiciário, carcerário, policial, defesa etc.), uma reforma parcial (parte desses, como os relativos à segurança pública) ou ainda uma reforma institucional. Inúmeros estudos são realizados, existe uma grande participação de todos os integrantes da instituição, que são consultados com frequência, além de serem informados das etapas de uma reforma. Esse processo deve ser inclusivo e transparente, e não uma surpresa, onde da noite para o dia é publicada uma reforma institucional, sem o envolvimento dos funcionários, pois foi pensada e desenvolvida por um grupo pequeno e fechado de conhecedores plenos das necessidades corporativas. As reformas irão agradar a todos? Não. Mas deixar que mais de 90% de uma instituição fique a margem e não participe de um processo que impacta diretamente suas vidas e de suas famílias é no mínimo um sinal de desrespeito. Não há vergonha em aprender com o outro, pois ter humildade é uma virtude.
E há momentos onde reformas são necessárias, mesmo que profundas. Nunca houve uma reforma policial no Brasil, algo muito comum em outros países. Quem sabe não chegou a hora?
"Sejamos a mudança que queremos para o mundo!" (Ghandi)

Comentários

Postagens mais visitadas