Por que o Brasil continua deficiente na gestão de policiais para missões de paz da ONU?





Ao longo dos anos, a gestão de policiais brasileiros para missões internacionais, mais especificamente para missões de paz da ONU, vem alternando entre razoável a péssima. Na maior parte das vezes, das poucas, que as relações são positivas, isto deve-se a personalidades de alguns profissionais e suas qualidades. Infelizmente, quando tudo tende a evoluir de uma maneira sistemática ocorrem mudanças, e efeitos quase que bizarros misturam-se a uma complexa e burocrática engenharia da pesada máquina do Estado, sendo necessário, para apenas uma simples indicação, que muitos países o fazem em poucas horas ou pouquíssimos dias, passe por dezenas de seções, órgãos, ministérios, e muitos e muitas assinaturas de aprovações.
Quando o tema é indicação de policial para uma missão, com certa frequência a sensação que muitos têm, aqueles que sofrem diretamente, é de um cenário de regressão e desconhecimento nos processos, além de criação de normas e regras que ninguém sabe a origem, pois não vem, certamente das Nações Unidas.
Cabe aos Estados-Membros da ONU a efetiva análise dos currículos dos candidatos a vagas em missões de paz ou em QGs, quer como Individual Police Officers (IPO)/United Nations Police (UNPOL) ou em cargos de contratados (secondment).
Para tanto, o órgão responsável pela indicação, que se presume ser policial (no âmbito internacional), deve alinhar os currículos com os skill-sets para os casos de IPOs e os currículos (P11) com o previsto no job descriptions de cada cargo.
Ou seja, para cada cargo, deve ser feita a devida triagem. Se uma missão de paz necessita de 5 policiais especialistas em controle de distúrbios civis, não adianta o país indicar policiais que não tenham essas qualificações. Se uma missão tem uma vaga para um policial especialista em policiamento comunitário, se o país indicar um policial sem fazer a devida análise, esse currículo será desconsiderado.
Da mesma maneira, e ainda de uma forma mais rigorosa, os currículos (P11) para cargos em secondment (contratados) devem ser analisados criteriosamente, em suas competências, habilidades, nível educacional, experiência profissional, etc. 
Parece óbvio e claro para qualquer pessoa, mas o Brasil não fez.
Os países que não realizam as devidas triagens e análises, e não observam se os perfis dos policiais estão de acordo com as demandas da ONU, mesmo em seus detalhes, levam apenas a uma grande perda de tempo, enorme burocracia e geram frustrações diversas aos policiais brasileiros de algo inviável, o qual se perderá no meio do caminho.
 Sem que os órgãos responsáveis pelos países façam o “mínimo”, analisar os currículos de acordo os skill-sets ou job description, essas indicações são de pronto desconsideradas. Ou seja, vão para o lixo.
Mas por quais motivos os responsáveis no Brasil insistem em cometer os mesmos equívocos, não realizam as triagens e inventam regras que não encontram apoio em quaisquer documentos e normas das Nações Unidas?
Uma incógnita que persevera por anos e anos.
Muito me espanta a constatação desses procedimentos ao longo do tempo e constatado mais uma vez nesta semana, onde o Brasil indicou apenas um policial para um cargo na Sede em NY (quando existiam 3 vagas com perfis totalmente diferentes) e indicado outro que não preenche os requisitos previstos, ambos secondment.
Ou seja, todo trabalho em vão, fora a movimentação da máquina do estado, pesada e lenta, nas esferas federal e estaduais.
Será mesmo que o Brasil não tem profissionais que possam preencher os perfis exigidos pela ONU? Qual será a dificuldade em ler a documentação e fazer análise dos currículos?
Inúmeros são os problemas gerados nas corporações, com prazos extremamente curtos para que o policial providencie toda a longa documentação, ao passo que o prazo da ONU ainda perdure ou mesmo que os documentos com as vagas tenham ficados retidos em alguma caixa de entrada por dias e dias.
Alguns fatos curiosos:
1.     Recentemente, “alguém”, sabe Deus quem, decidiu que todos os policiais brasileiros que desejam integrar uma missão de paz precisam de um diploma universitário, algo não existente na ONU, salvo para cargos de contratado (secondment). Tal decisão, contrária as da ONU, vetou uma enorme quantidade de policiais qualificados poderem ao menos participar de processos seletivos.
2.     Em processos seletivos realizados há poucos anos, membros dos órgãos encarregados “decidiram” que para ser habilitado no idioma francês, o policial também tinha que ser primeiramente habilitado no idioma inglês, o que causou a desqualificação de vários fortíssimos candidatos, por uma iniciativa que vai contra todas as normas da ONU sobre processos seletivos. Após questionamentos, foi informado que seria importante saber inglês para se comunicar nos aeroportos... (?)
3.     Em outro evento, uma autoridade encaminhou um documento com análise jurídica “negativa” sobre o amparo de policiais brasileiros em cargos de secondment, apesar do Ministério da Defesa, Estado-Maior Conjunto e própria corporação, todos de níveis muito superiores, já terem se manifestado anteriormente de forma completamente oposta.
4.     Há pouco tempo, um documento foi enviado a ONU informando que um oficial-general é o comandante/chefe de todas as polícias brasileiras. Eu precisei ler muitas vezes para me convencer do que estava escrito não era devido a meu baixo nível de fluência.
5.     A ocorrência de ligações pressionando alguns policiais a se “voluntariar” para determinadas missões, viola um princípio básico e fundamental para operações de paz da Organização, a do caráter “voluntário” e não “pressionado”, “constrangido” ou “coagido”, caso contrário, não mais teria outra oportunidade por ter negado.
6.     Recorrentes perdas de prazos para indicações, que beiram o absurdo devido aos prazos emitidos pela Divisão Policial.
Para todos os fatos supra, existem uma série de testemunhas e documentos comprobatórios.
Após mais de uma década de experiência no assunto, somente quando o tema de policiais brasileiros a serviço de organismos internacionais com os quais o Brasil tenha relações passar às mãos de um órgão policial, sério, estruturado e composto por policiais veteranos em missões internacionais, é que a situação poderá evoluir.
Há anos venho escrevendo e pautando minhas análises com base em minhas experiências, nas normas da ONU e legislações nacionais e internacionais, as quais norteiam todos os 193 estados-membros. Mais uma vez, reescrevo e ressalto, agora com um pouco mais de experiência, os pontos que considero essenciais:
1.     Agenda Policial: elaboração, por policiais experientes junto com membros da diplomacia nacional, de uma agenda para emprego de policiais brasileiros em missões internacionais. Após 29 anos de participação de policiais brasileiros em missões de paz da ONU, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil não possui uma agenda para tratar o tema (estratégias, emprego, efetivo, legislação, etc.).

2.     Gestão Policial: criação de uma estrutura em órgão público para a realização de gestão policial adequada.
a.      Logicamente, deve ser composto por policiais veteranos e com experiência notória.
b.     Policiais gerindo policiais. É uma lógica extremamente simples. Afinal, nenhuma categoria gosta de ser gerida por outra. Senso comum.
c.      A gestão brasileira, embora tenha melhorado, é considerada uma das piores no âmbito internacional e dentre as corporações estaduais, tida como pessoal, com falta de transparência na oferta, indicações e remanejamento de vagas, além das constantes invenção de regras etc.

3.     Legislação: até hoje o Brasil não possui uma legislação federal que trate sobre o emprego de policiais em missões de paz, deixando a cargo de cada Unidade Federativa legislar sobre o tema, se tiver interesse. Ao passar a cargo da União, os policiais, independente da origem, representam o Brasil e as nações Unidas. Nada mais justo do que uma legislação que ampare esses profissionais.

4.     Orçamento: o Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB) realiza cursos de preparação para militares, policiais e até civis. Existe uma tendência a tornar obrigatório a participação nesses cursos, todavia, diferentemente dos militares das Forças Armadas que têm todas as despesas de transporte e diárias pagas, os demais policiais militares, em sua maioria, têm que pagar do seu salário com os custos, se for autorizado a frequentar o curso por seu comando geral.

a.     A maioria das autoridades das Unidades Federativas não vêm quaisquer vantagens em ceder efetivos para passar 4 semanas realizando um curso ou mesmo 1 ano em área de missão, pois não há uma “compensação” por parte da União.
b.     Quais os ganhos tangíveis e intangíveis de ceder efetivo para representar o Brasil se a União sequer tem uma legislação ou orçamento para arcar com os custos?
c.      Em respeito ao pacto federativo previsto em nossa Constituição, deveria não apenas amparar e arcar com os investimentos, para prover os estados de algum tipo de contrapartida, como fazem na cooperação federativa do Departamento da Força Nacional de Segurança Pública.
d.     Eu sei quais são esses “ganhos”, mas para quem não tem conhecimento mais profundo, deveria a União e os órgãos responsáveis “comprar a causa” e litigar em prol daqueles que sofrem retaliações e estigmas de “se deu bem”, algo muito diferente nas Forças Armadas, onde as instituições admiram, incentivam e reconhecem os militares que atuaram em missões de paz no mundo.
e.      Ao passarem a disposição do Estado brasileiro, mesmo sendo estaduais, os policiais deveriam ter seus salários e ajudas adicionais por periculosidade arcados pela União, pois representam o Brasil em zonas de conflitos armados ou a serviço de organizações internacionais, com os quais o país seja membro.  

5.     Adido Policial na Missão Permanente junto às Nações Unidas: Acompanhando pedidos da Divisão Policial da ONU, a presença da figura de um Adido Policial na Missão Permanente junto às Nações Unidas é imprescindível para que exista um maior envolvimento, acréscimo do número de missões e vagas, novas oportunidades e a participação, com conhecimento notório da atividade policial, do Grupo Estratégico de Adidos Policiais (SPAG), que representa os temas policiais dos países junto a ONU. Ademais, o assessor policial deve auxiliar a implementação da “agenda policial” supra, e estar diretamente ligado ao órgão criado para tal fim, além de reportar-se a área diplomática encarregada com temas de paz e segurança, como ocorre com o Adido Policial da Argentina, que não está subordinado ao corpo militar da Missão Permanente, mas sim a sua unidade em Buenos Aires e ao alto nível da diplomacia da Missão.
6.     Inclusão: com o estabelecimento da estrutura mínima acima, convém que os demais órgãos policiais brasileiros sejam incluídos. Costumo dizer que a ONU não nega oferta de policiais, em particular, de efetivos brasileiros, bem qualificados e com conhecida capacidade de resolução de problemas e bom relacionamento interpessoal.
a.      Devido a normas previstas pela ONU, há como inserir outros órgãos. Contudo, por meio de capacitações, há a necessidade de nivelamento e treinamento regulado, em especial com o SGF e nova estrutura de treinamento da Polícia da ONU, “a arquitetura de treinamento”.
b.     É viável e factível, basta vontade.

Esses pontos são fundamentais para pensar num Brasil com uma participação policial forte e respeitado no cenário mundial. Até lá, dependemos das boas e excelentes atuações de cerca de 10 policiais militares brasileiros que atuam simultaneamente em missões de paz. Infelizmente, esse é o número que o nosso país consegue gerir. Parece piada, mas é a realidade, embora, já tenhamos designados mais de 20 policiais militares para uma mesma missão, graças a ações pontuais de algumas autoridades militares com poder de convencimento e devidamente bem assessorados.
No âmbito nacional, a alta burocracia e a falta de sintonia entre os órgãos geram apenas grandes esforços pessoais para o preparo em bem representar nosso país mundo afora. Há muito a ser feito. Mas para existir mudança é necessário deixar os egos e vaidades pessoais e institucionais de lado e começar a pensar no que realmente importa, o Brasil. Quem dará o primeiro passo?

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